Texto:
São Paulo 10 de Novembro, 1924
Meu caro Carlos Drummond
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(...) Eu sempre gostei muito de viver, de maneira que
nenhuma manifestação da vida me é indiferente.
Eu
tanto aprecio uma boa caminhada a pé até o alto da Lapa
como uma tocata de Bach e ponho tanto
entusiasmo e carinho no escrever um dístico que vai figurar
nas paredes dum bailarico e morrer no lixo
depois como um romance a que darei a impassível eternidade
da impressão. Eu acho, Drummond, pensando |
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bem, que o que falta pra certos moços de tendência
modernista brasileiros é isso: gostarem de verdade da
vida. Como não atinaram com o verdadeiro jeito de gostar da
vida, cansam-se, ficam tristes ou então fingem
alegria o que ainda é mais idiota do que ser sinceramente triste.
Eu não posso compreender um homem de
gabinete e vocês todos, do Rio, de Minas, do Norte me parecem
um pouco de gabinete demais. Meu Deus!
se eu estivesse nessas terras admiráveis em que vocês
vivem, com que gosto, com que religião eu |
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caminharia sempre pelo mesmo caminho (não há
mesmo caminho pros amantes da Terra) em longas
caminhadas! Que diabo! estudar é bom e eu também estudo.
Mas depois do estudo do livro e do gozo do
livro, ou antes vem o estudo e gozo da ação corporal.
(...) E então parar e puxar conversa com gente
chamada baixa e ignorante! Como é gostoso! Fique sabendo duma
coisa, se não sabe ainda: é com essa
gente que se aprende a sentir e não com a inteligência
e a erudição livresca. Eles é que conservam o
espírito |
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religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual
esclarecido de religião. Eu conto no meu "Carnaval
carioca" um fato a que assisti em plena Avenida Rio Branco. Uns
negros dançando o samba. Mas havia uma
negra moça que dançava melhor que os outros. Os jeitos
eram os mesmos, mesma habilidade, mesma
sensualidade mas ela era melhor. Só porque os outros faziam
aquilo um pouco decorado, maquinizado,
olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela,
não. Dançava com religião. Não olhava
pra |
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lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este
é um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela
negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero,
muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a
felicidade. |
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ANDRADE,
Mário de. A lição do amigo: cartas de Mário
de Andrade a Carlos Drummond de Andrade.
Rio de Janeiro: J. Olympio, 1982, pp. 3-5.
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"Inúmeros são os casos de troca
de correspondência entre artistas, escritores, músicos,
cineastas, teatrólogos e
homens comuns em nossa tradição literária.
Mário de Andrade, por exemplo, foi talvez o maior de nossos
missivistas. Escreveu e recebeu cartas de Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Tarsila do Amaral,
Câmara Cascudo, Pedro Nava, Fernando Sabino, só para
citar alguns. O conjunto de sua correspondência não
só
nos ajuda a conhecer o seu pensamento, seus valores e sua própria
vida, como também entender boa parte da
história e da cultura brasileira do século XX."
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DINIZ,
Júlio. "Cartas: narrativas do eu e do mundo" In
Leituras compartilhadas - cartas. Fascículo especial 2, ano
4.
Rio de Janeiro: Leia Brasil / Petrobras, 2004, p.10.
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A partir da leitura do trecho da carta de Mário
a Drummond e do comentário acima, responda aos seguintes itens:
Questão 01 (valor: 2,0
pontos) |
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a) Percebe-se na carta uma crítica direta
a uma certa postura elitista em relação à arte e
à vida de grande parte da intelectualidade brasileira da época.
Retire do texto duas passagens que comprovam tal afirmação.
b) Comente, com suas próprias palavras, a visão
que Mário de Andrade possui das manifestações estéticas
oriundas do povo.
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Respostas: |
a)
"o que falta pra certos moços de tendência modernista
brasileiros é isso: gostarem de verdade da vida"; "Eu
não posso compreender um homem de gabinete e vocês todos,
do Rio, de Minas, do Norte me parecem um pouco de gabinete demais"
; "estudar é bom e eu também estudo. Mas depois
do estudo do livro e do gozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo
da ação corporal" ; "Fique sabendo duma coisa,
se não sabe ainda: é com essa gente que se aprende a
sentir e não com a inteligência e a erudição
livresca" , "Aquela negra me ensinou o que milhões,
milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram.
Ela me ensinou a felicidade".
b) A defesa e a incorporação
de elementos e valores da cultura popular à cultura erudita
caracterizam a visão de Mário de Andrade expressa
na carta.
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Questões: 01 | 02
| 03 | 04 | 05
| demais provas
Questão 02
(valor: 2,0 pontos) |
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Mário de Andrade, ao comentar um trecho de seu poema
"Carnaval Carioca", demonstra encanto por uma moça que,
segundo ele, "dançava com religião". Explique,
com suas palavras, o que seria, na visão do autor, "dançar
com religião".
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Respostas: |
a) Segundo o autor, "dançar
com religião" é dançar de forma espontânea,
intensa e prazerosa.
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Questões: 01 | 02
| 03 | 04 | 05
| demais provas
Questão 03 (valor: 2,0
pontos) |
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Retirado do contexto, o trecho "(não há
mesmo caminho pros amantes da Terra)" pode ser interpretado
de duas maneiras distintas, considerando-se diferentes acepções
atribuídas à palavra mesmo.
a) Quais são as interpretações
possíveis?
b) Qual é interpretação mais adequada à
carta de Mário de Andrade? Justifique a sua resposta.
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Respostas: |
a)
Uma interpretação possível é "não
há, de jeito nenhum, caminho para os amantes da Terra".
Outra interpretação é de que "não
há caminho idêntico para os amantes da Terra".
b) A interpretação
mais adequada é "não há caminho idêntico
para os amantes da Terra" pois, de acordo com o texto, como
as terras do Rio, de Minas e do Norte são admiráveis,
longas caminhadas por esses caminhos seriam sempre interessantes.
Já a interpretação de que "não
há, de jeito nenhum, caminho para os amantes da Terra"
torna o texto sem sentido.
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Questões: 01 | 02
| 03 | 04 | 05
| demais provas
Questão 04 (valor: 2,0
pontos) |
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a) Segundo o autor, do fato de certas pessoas não
terem gosto verdadeiro pela vida decorrem algumas conseqüências.
Quais são elas?
b) Observando a concordância nominal empregada em cada um
dos enunciados abaixo, aponte as diferenças de significado existentes
entre eles.
A - moços de tendência modernista brasileiros
B - moços de tendência modernista brasileira
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Respostas: |
a)
Cansaço, tristeza e, o que seria ainda pior, alegria fingida.
b) No enunciado A, trata-se
de moços brasileiros com tendência modernista; no enunciado
B, trata-se de moços cuja tendência modernista é
brasileira.
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Questões: 01 | 02
| 03 | 04 | 05
| demais provas
Questão 05
(valor: 2,0 pontos) |
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a)
Na carta a Drummond, Mário de Andrade utiliza uma linguagem mais
coloquial, trazendo a impressão, algumas vezes, de que a interação
está ocorrendo na modalidade oral da língua. Transcreva
do texto dois exemplos dessa manifestação da oralidade na
escrita.
b)
No texto, a subjetividade é marcada pelo emprego de pronomes
e verbos em 1ª pessoa. No entanto, em determinado trecho, entre as
linhas 6 e 14, o autor faz uso repetidamente de um outro recurso de linguagem
para expressar sua emoção. Que recurso é esse?
c)
Considere o período "Este é um caso em que
tenho pensado muitas vezes." Reescreva-o substituindo o verbo
pensar pelo verbo aludir. Faça as
modificações que julgar necessárias.
Respostas: |
a)
"pensando bem" , "dum"; "duma", "(...)o
que milhões, milhões é exagero, muitos(...)".
b) O recurso é o ponto
de exclamação.
c) "Este é um caso
a que tenho aludido muitas vezes."
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Questões: 01
| 02 | 03 | 04
| 05 | demais
provas
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