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Brasão da PUC-Rio

Coordenação Central de Pós-Graduação e Pesquisa

Programa de Pós-Graduação em Comunicação

Projetos de pesquisa

Linha de Pesquisa: Comunicação e Experiência
A pesquisa das imagens de arquivo e o desenvolvimento de um método

Docente: Profª. Drª. Patricia Furtado Mendes Machado

Descrição:

Este projeto propõe desenvolver, ampliar e sistematizar métodos de pesquisa e de análise de arquivos audiovisuais, além de discutir os usos, as construções de sentidos e os modos de circulação das imagens cinematográficas nos domínios da Comunicação. A abordagem parte de uma perspectiva ainda pouco explorada no campo da História e do Cinema no Brasil, que leva em conta a complexidade da imagem, a discussão sobre seus modos de arquivamento e apagamento, a análise dos seus processos migratórios e das estratégias de sua tomada e retomada na montagem. Na contramão de uma uniformização crescente do uso das imagens em filmes, séries e programas de tevê – e de uma tendência a tratá-la como portadora de verdades incontestáveis – essa perspectiva compreende que a imagem pode carregar testemunhos e inscrições históricas e que, para fazê-los aparecer, é necessário um trabalho de montagem e desmontagem, assim como um olhar minucioso para os seus detalhes: buscar anomalias, aquilo que nela perturba e o que escapa às intenções do fotógrafo ou cinegrafista que a produziu.

Antecedentes:

A proposta se filia ao campo dos estudos das imagens de arquivo no Cinema e no desenvolvimento de metodologias de pesquisa e análise de imagens fotográficas e cinematográficas. Busca-se o aprofundamento no estudo da produção de sentidos dos arquivos audiovisuais quando filmados, arquivados, desarquivados, montados e remontados, assim como na contribuição das narrativas criadas a partir dessas imagens para a materialização de experiências em seus aspectos históricos, sociais e estéticos. Interessa a investigação sobre a produção, as origens  e a circulação das imagens, assim como a reflexão sobre o estatuto dos arquivos audiovisuais em suas diferentes materialidades e na sua relação com as novas tecnologias. Entendemos que a intervenção reflexiva, artística e poética sobre os arquivos testemunhais a partir da montagem oferece a possibilidade de disputar sentidos, imaginar e reinventar as experiências contemporâneas profundamente condicionadas pela profusão de imagens.

Objetivos:

Perspectivas teóricas

O método de análise das imagens de arquivo proposto pela historiadora da arte Sylvie Lindeperg, e desenvolvido em três livros publicados (1997, 2007, 2013), tem se mostrado uma proposta inovadora no campo científico da pesquisa audiovisual. Interessa, portanto, aprofundar a análise das particularidades do método e os modos específicos a partir dos quais os desenvolvemos em novas pesquisas de acordo com as possibilidades apresentadas pelo contexto dos acervos brasileiros. Nesse caminho, é importante apontar potencialidades futuras para a exploração do método com o surgimento de novas tecnologias digitais de produção e de organização de repositórios digitais de imagens.

As pesquisas desenvolvidas por Lindeperg ao longo da última década se dedicam a investigar as condições de produção e a circulação de imagens da Segunda Guerra Mundial retomadas em produções de caráter cinematográfico e jornalístico. A proposta se diferencia de metodologias tradicionais de análise do campo de estudos do cinema e história porque, em vez de se concentrar no filme pronto ou nos materiais que se referem a ele, o método abre a perspectiva de reflexão sobre os próprios arquivos audiovisuais utilizados. O cinema de arquivo é tema que se tornará central na obra de Lindeperg, principalmente a partir de Nuit et bruillard: un film dans l’histoire (2007), livro em que a autora realiza uma investigação minuciosa sobre as imagens apropriadas pelo diretor Alain Renais no filme "Noite e neblina” (1955), recuperando, também, a história da realização e da trajetória do documentário. Para tanto, recorre a diferentes documentos que possam trazer informações sobre os arquivos usados.

Sylvie Lindeperg propõe que os fragmentos de filmes sejam compreendidos como abertura de um “caminho à história dos olhares e do sensível inscrita o mais próximo dos corpos daqueles que fizeram o acontecimento, sendo os atores, testemunhas ou as vítimas” (2013, p.11). De um modo pioneiro, sua proposta é pensar sobre as circunstâncias do momento da tomada, sobre gestos, hesitações, escolhas de quem filma, sobre os olhares portados sobre as imagens nos caminhos que seguem desde o momento em que foram produzidas. A reconstituição do contexto da tomada é também uma ética que, diante da saturação e hipervisibilidade, assume como tarefa a recuperação da história, dos nomes, dos destinos e das intenções dos corpos que estavam diante e atrás das câmeras. A exploração do que chama de potência do detalhe vai constituir um dos princípios fundamentais do método de Lindeperg. Inspirado na micro-história proposta por Carlo Ginzburg e nas análises da pintura do historiador da arte Daniel Arasse, o método consiste em uma longa observação da imagem, em vários retornos a ela e na espera que o detalhe possa aparecer e tornar visível o invisível.

Essa metodologia foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa de doutorado "Imagens que restam: a tomada, a busca dos arquivos, o documentário e a elaboração de memórias da ditadura militar brasileira"(2016), e serviu de inspiração para a análise das imagens do período da ditadura militar brasileira em seus detalhes, para cruzá-las a documentos produzidos pela polícia política, cartas e papéis de produtoras militantes no exterior, reportagens públicadas na mídia, entrevistas e testemunhos de quem viveu ao período. O intuito foi compreender de que modo o ato de empunhar a câmera para produzir imagens testemunhais e o interesse em fazer com que essas imagens não fossem destruídas colaboraram para a elaboração de memórias políticas e coletivas. O objetivo principal foi mostrar como imagens que sobreviveram às perseguições do aparato policialesco, à clandestinidade, às ações do tempo podem ser usadas para trazer à tona histórias de vidas negligenciadas e esquecidas durante e após o regime de suspensão democrática, assim como evidenciar a tarefa política do pesquisador de buscar os rastros que deixaram. Desse modo, evidenciou-se o papel do cinema de iluminar opacidades e de sua importância na resistência ao autoritarismo.

Quando partimos para a busca da história da fabricação desses registros, nos foram colocados desafios diferentes daqueles que as pesquisas de Lindeperg costumam enfrentar. Para começar, ao contrário dos acervos europeus, nos quais é possível encontrar uma unidade e informações precisas sobre as imagens arquivadas, não possuímos um acervo com as imagens da ditadura militar no Brasil. Tivemos que mapear e investigar imagens em diferentes acervos públicos e privados nacionais e internacionais que, na maioria das vezes, não contém muitas informações sobre o material. Nesse processo, foi preciso agir como detetive em busca dos vestígios de imagens desaparecidas ou esquecidas, seguir rotas de imagens clandestinas e analisar filmes que as retomaram a fim de restituir as trajetórias desses registros. Procuramos pistas sobre as imagens em documentos, reportagens e através da realização de entrevistas com realizadores e arquivistas. Outra etapa do processo consistiu em restaurar e digitalizar materiais que estavam sofrendo processos de deterioração por conta da falta de verbas de preservação nos acervos brasileiros.

As dificuldades colocadas pela fragilidade dos acervos no Brasil, a dispersão das imagens do período, a ausência de informações sobre o contexto de produção do material nos levou a desenvolver um método próprio de pesquisa gestado em meio ao contexto específico dos arquivos e das imagens no Brasil. Enquanto Sylvie Lindeperg se interessa por imagens que fazem parte de um sistema de grande circulação e de hipervisibilidade, como é o caso dos registros da Segunda Guerra Mundial, nós nos dedicamos a objetos que por muito tempo estiveram à margem dos estudos cinematográficos e das iniciativas de conservação, como filmes amadores, publicitários, clandestinos. No trabalho com essas imagens do Brasil, o estudo da migração ganha, então, outros contornos, desafios, potencialidades. Dada a fragilidade da memória cinematográfica em nosso país, torna-se necessário não apenas buscar essas imagens, cruzar fontes audiovisuais e textuais, mas acrescentar novas táticas àquelas praticadas por Lindeperg: é o caso de entrevistas com pessoas que participaram não só da produção, mas também da conservação das imagens.

Se nesse processo lidamos com a escassez de raros arquivos audiovisuais, interessa-nos também refletir sobre o excesso de imagens que nos atravessam na contemporaneidade, desafios que são colocados para o campo da prática e da pesquisa das imagens de arquivo. Nas telas da tevê, do computador e dos aparelhos celulares recebemos imagens variadas que rapidamente caem em um limbo de registros esquecidos. Como interromper o fluxo incessante dessas imagens e selecionar aquelas que nos interessam, que podem nos revelar e estimular pontos de inflexão importantes para a criação de narrativas audiovisuais e para a elaboração de memórias das pessoas, das cidades, dos espaços?

A partir dessas questões interessa avançar na reflexão sobre imagens digitais evasnescentes que circulam de forma veloz: são fabricadas, disponibilizadas e armazenadas quase instantaneamente, aparecem em muitas telas e em poucas horas são esquecidas. Incluímos como desafios da pesquisa a necessidade de se pensar formas de seleção e usos de imagens de diferentes naturezas, como aquelas produzidas pelo google maps, drones, câmeras de vigilância, aplicativos de celular. A pesquisa dessas imagens e a reflexão científica sobre as várias formas de aplicação do método de pesquisa tem o objetivo de colaborar para a fortalecimento de um campo de pesquisa científico sobre a memória e o presente dos arquivos audiovisuais no Brasil.

Metodologia

A proposta do projeto foca no desenvolvimento de uma metodologia de mapeamento, busca e investigação de imagens de arquivo em acervos físicos e digitais no Brasil. O método consiste na análise desses materiais filmográficos, na busca de informações sobre o contexto de sua produção, dos modos de arquivamento e circulação e nos novos sentidos que ganham nos processos de montagem em filmes, séries, programas de televisão e demais produtos audiovisuais. Fazemos nesse caminho um duplo movimento: do filme em direção aos arquivos e dos arquivos em direção aos filmes que os retomam. Uma etapa importante do projeto consiste em, a partir de questões colocadas no presente, buscar informações sobre as imagens a partir do cruzamento do material filmográfico com documentos variados (textos, fotografias, cartas, documentos oficiais). Depois da análise da tomada e da retomada das imagens, interessa ao método desenvolver reflexões sobre as hipóteses de pesquisa e as estratégias narrativas a ser elaboradas tanto na montagem dos filmes quanto na própria escrita da dissertação/tese.

Bibliografia:

COMOLLI, Jean-Louis. Spectres. IN: LINDEPERG, Sylvie. La voie des imagens: quatre histoires de tournage au printemps-été 1944. Paris: Editions Verdier, 2013
FRANÇA, Andrea e MACHADO, Patrícia. Adendo sobre a história de três imagens tóxicas. Doc-on line, n,29, 2021. In: http://ojs.labcom-ifp.ubi.pt/index.php/doc/article/view/950 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso e fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GINZBURG, Carlo e PONI, Carlo. La microhistoire. Gallimard | Le Débat 1981/10 - n° 17 LE LINDEPERG, Sylvie. Les Écrans de l'ombre. La Seconde Guerre mondiale dans le cinéma français (1944-1969). Paris CNRS ditions 1997
16 _________________. La voie des imagens: quatre histoires de tournage au printemps-été 1944. Paris: Editions Verdier, 2013
________________. Nuit et Brouillard- un film dan l ́histoire. Odile Jacob, Janvier 2007. _____________. Des lieux de mémoire portatifs. Entretien réalisé par Dork Zabunyan. Critique: Revue générale des publications françaises et étrangères. Paris: Les Éditions de Minuit, Mars 2015.
KINGMAN, Eduardo. Los usos ambiguos del archivo, la historia y la memoria. Iconos, Revista de Ciencias Sociales. N 42, 2012, Ecuador. Disponível em: https://revistas.flacsoandes.edu.ec/iconos/article/view/364
MACHADO, Patrícia. Imagens que restam: a tomada, a busca dos arquivos, o documentário e a elaboração de memórias da ditadura militar brasileira. Tese de doutorado em Comunicação e Cultura UFRJ, 2016.
ODIN, Roger (org.). Le film de famille: usage privé, usage public. Paris: Méridiens


O documental no cinema e na televisão: imagens e sentidos em disputa

Docente: Profª. Drª. Andréa França

Descrição:

O documental no cinema e na televisão: imagens e sentidos em disputa” visa ampliar, aprofundar e sistematizar estudos que venho desenvolvendo há alguns anos no campo do documentário, seja no campo do cinema, das artes ou da televisão. Trata-se de uma reflexão sobre imagens e práticas documentais que amplia e desloca a noção de documento, considerando-o uma composição complexa de camadas de tempos, sentidos, lacunas, uma composição em aberto para novas leituras - e não um objeto dado a priori (Comolli, 2004; Didi-Huberman, 2003; Mitchell, 2011). Em foco, está a possibilidade de ler a imagem-documento como mapa cognitivo, afetivo, sensorial, cujos referentes imediatos cedem espaço para associações, justaposições e imersões novas.   

Antecedentes:

O cinema documental brasileiro vem propondo um diálogo profícuo com a falta de documentos testemunhais - pictóricos, impressos, audiovisuais - da época da ditadura no país. Elena (Petra Costa, 2013), Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013), Diário de uma Busca (Flavia Castro, 2010), Uma longa viagem (Lucia Murat, 2011), Utopia e barbárie (Silvio Tendler, 2009), Cidadão Boilesen (Chaim Litewski, 2009), entre outros, apostam em atos performativos, em narrativas poéticas e sensoriais, para lidar com essa falta. Situações, afetos e traumas do passado são teatralizados (auto-performance do diretor) de modo a permitir que a imagem-documento (fotografias, sobretudo) seja experimentada não de um modo único, como revelação de uma evidência, mas como superfície lacunar, sempre passível de novas leituras.

Imagem e montagem exploram as sensações inscritas no corpo daqueles que encenam a dor (do exílio, da morte, da ausência), transformando o documentário não em uma janela aberta para a história do país, mas num teatro explícito e reinvidicado, onde gestos, falas e experiências exibem a difícil dinâmica das relações entre documental e ficcional, documento e lacuna, memória e história, imagens domésticas e públicas. Em meio a essa dinâmica, emerge uma imagem-documento povoada de incompletudes e vestígios do que foi, convocando o espectador a participar de um universo familiar - de filhos, pais - e estranhamente opaco. Filmes que revelam portanto imagens lacunares friccionadas pelas ausências íntimas e históricas.

Tais propostas colocam questões à noção de documento, à prática da montagem, à produção cinematográfica e audiovisual. A utilização de imagens-documento não como lugar de atestação ou de referência, mas como lugar de incompletude e do sensorial (Deleuze, 2007) é o que tem mobilizado essa pesquisa. Artigos como “Imagem-performada e Imagem-atestação: o documentário brasileiro e a reemergência dos espectros da ditadura” (Revista Galáxia, v. 28, 2014), “Os brinquedos-fósseis e o tempo da memória” (em: Eu assino embaixo: Biografia, memória e cultura, 2014), “Figuras da imersão visual do espectador na imagem: a construção dos lugares de experiência nas práticas documentais contemporâneas” (Comunicação, Mídia e Consumo v. 10, 2013), “Documento, arquivo e ensaio fílmico: a apropriação de imagens na produção audiovisual contemporânea” (Revista Galáxia v. 11, 2011), entre outros de minha autoria, são referências importantes dentro dessa discussão.

Por outro lado, no domínio da televisão, se minhas publicações anteriores investigavam nos documentários feitos nos anos 1970, o desejo de enunciar asserções e verdades sobre o mundo e o tempo (França, 2012), o projeto atual estuda, a partir de um conjunto de programas da década seguinte feitos para a Rede Bandeirantes e a extinta Rede Manchete, a noção de documento vinculada não à ideia de atestação/asserção, mas como experimentação sensorial, plástica e sonora (América, de João Moreira Salles, Angola, de Roberto Berliner, African Pop, de Belisário Franca, entre outros). No recorte específico da relação entre documentário e TV, a década de 1980 no Brasil inaugura um pensamento do documental conectado à consciência das múltiplas mediações da imagem. O vídeo convoca uma consciência crítica, estética e política de que o “real”, na sua dimensão ontológica, é desafiado radicalmente pelo advento da tecnologia digital - no cinema, na fotografia, na televisão, nas artes em geral. O vídeo inaugura no campo das imagens documentais uma discussão sobre o sentido de realidade, de referente, e expande o alcance sensorial, afetivo e cognitivo do mundo (Dubois, 2004; Bellour, 1997). A emergência da noção de paisagem documental, na TV, é favorecida pela experimentação visual, plástica e sonora com o vídeo.

É precisamente essa situação no domínio das imagens que solicita uma maior urgência às interrogações que o crítico francês Serge Daney se coloca em meados dos anos 1980: como se inserir nesse fluxo audiovisual? Como instaurar diferença em meio à homogeneidade das imagens? Como inventar novas maneiras de olhar? Como dirá Daney, habitar o mundo é ser habitado por imagens, por todas elas - do cinema à televisão, da publicidade às galerias de arte e museus; habitar o mundo é desde então ser habitado por imagens que atravessam o próprio percurso do olhar, imagens que nos constituem, nos assujeitam, nos (con)formam mas que também nos redefinem e libertam quando inventam relações novas entre si, de modo a convocar no espectador diferentes afetos - o mal-estar, a dúvida, o desconforto (Comolli, 2004).

Eis, portanto, uma relação - entre imagem-documento, cinema, televisão - histórica e certamente complexa que nos estimula a refletir sobre a noção de documento nas suas conexões com a memória histórica e o esquecimento, com as imagens enquanto campo de disputa de sentidos, com a montagem como gesto capaz de operar deslocamentos e ressignificações do que já está dado. Queremos discutir e problematizar essa relação no que diz respeito ao aumento da produção de documentários em todo mundo e à profusão de imagens documentais não só nas salas de cinema, nos festivais e na televisão, mas na internet, em dispositivos móveis como celulares, nos espaços das galerias, bienais e museus.

Objetivos:

Perspectivas Teóricas

O projeto pensa o documentário dentro de um contexto midiático ávido por imagens documentais na sua dimensão de verdade, urgência e atestação. Dentro do nosso recorte porém, interessa pensar o documental como imagem indecifrável e sem sentido determinado, enquanto não for trabalhada na montagem. Fotografias ou imagens em movimento dizem muito pouco antes de serem colocadas em relação com outros elementos, associadas a outras imagens, temporalidades, textos, depoimentos, campos artísticos. Segundo Georges Didi-Huberman, os historiadores têm muita dificuldade para trabalhar com imagens do passado porque se demanda com freqüência muito à imagem ou, ao contrário, quase nada. Quando se demanda muito – ou seja, que ela diga “toda a verdade” – fica-se rapidamente decepcionado: as imagens são apenas fragmentos arrancados, pedaços diante das quais aquilo que vemos é frequentemente pouco em comparação ao que sabemos. E quando se demanda pouco à imagem, o movimento é de desqualificação, de exclusão da imagem do campo da história e do conhecimento sob a alegação de que ela não passa de simulacro (Didi-Huberman, 2003, p. 85).

Nos seus escritos, Didi-Huberman reafirma a imagem - pictórica, fotográfica, em movimento - como constituída por camadas, temporalidades, lacunas, passível sempre de novos sentidos, posto que não é um objeto inteiro, que possa ser capturado de uma vez por todas. Trata-se portanto de desmontar cada imagem, dissociá-la de imagens já dadas, contrastá-las, reagrupá-las, para que possa justamente aparecer o espaço entre elas, suas relações subjacentes. Seu conceito de imagem de arquivo (imagem-documento) é importante a essa pesquisa posto que explicita a imagem na sua precariedade e lacuna, mas também na sua dimensão de testemunho, do gesto que a tornou possível (2003).

Também interessa ao projeto a relação da imagem-documento com a noção de paisagem. Certamente a paisagem não é um tema ideologicamente neutro e sua reemergência em determinadas épocas traz motivos diversos. As razões para o seu aparecimento na televisão da década de 1980 estão, portanto, no horizonte de nossa investigação. Se, como coloca Anne Cauquelin, a Natureza é uma “ideia que aparece vestida” em perfis intercambiáveis, perspectivistas, por meio da emergência de formas historicamente constituídas (2007, p. 151), queremos pensar de que modo a emergência da paisagem (urbana, da natureza) na TV se mistura às reflexões dos anos 1980 que atentam para a transformação na natureza das imagens quando elas passam a constituir um território de contaminação entre si – imagens do cinema, da televisão, do vídeo, da fotografia, do mundo digital. Neste cenário, a reinvindicação do documentário, ou da televisão, sobre si mesmo, em termos teóricos ou práticos, já não faz mais sentido (Le Péron, 1981; Bertin, 1981; Frapat, 1981). 

Tal abordagem mobiliza questões que alavancaram esse projeto: que afetos e ideias as paisagens documentais televisivas - do Japão, de Angola, da África, da América – perpetuam? Como essas produções tencionam o entendimento do documental enquanto “retratos do real” em prol de experiências não simplesmente subjetivas (a ilusão), mas de visões assubjetivas que operam na materialidade da imagem? As paisagens documentais, nesse sentido, são mais que instâncias geográficas; são construções sensoriais, culturais e memorialísticas em meio às quais a natureza, as cidades, o homem tornam-se uma evidência soberana que nos atravessa, um espasmo, a potência de um instante que nos abre à duração paradoxal de uma epifania (Deleuze, 2007).

Imagens documentais de terras distantes transformadas em paisagem pela televisão. Essa tema ecoa nas reflexões de Youssef Ishaghpour quando afirma, a partir do cinema de Abbas Kiarostami, que a paisagem só se torna visível nos seus filmes por ser o “longínquo” (2004). O longínquo dos lugares, dos povos, dos hábitos, desenha o Outro como opacidade que irrompe inesperadamente. Queremos pensar como os documentários televisivos no Brasil produzem imagens de terras distantes, como se dão os procedimentos estéticos e suas formas de fruição, como se formulam - ou não - formas de alteridade múltiplas.

Metodologia

Além das obras e dos autores citados, queremos dialogar com cineastas que trabalham com a retomada de materiais de origens diversas, como Bill Morrison, Agnès Varda, Peter Forgács, Harun Farocki. Nossa ideia não é analisar diretamente a produção desses cineastas, mas fazer de suas obras interlocutores que nos auxiliem para uma melhor investigação acerca dos procedimentos expressivos e estilísticos usados em práticas documentais diversas, atentando para o uso que fazem de imagens-documento (imagens de vigilância, domésticas, anônimas, institucionais) na sua relação explícita com as lacunas, as zonas de sombra, os resíduos; ou ainda, o uso das imagens-documento como experimento sensorial, sonoro, plástico (o tema da paisagem documental em Bill Morrison, por exemplo).  

Pensar o documentário dentro de um contexto midiático que começa a se ampliar é uma posição que encontra sustentação teórica nas reflexões elaboradas pelo crítico de cinema Serge Daney e pelo filósofo Gilles Deleuze  (1990), retomadas e aprofundadas por inúmeros pensadores contemporâneos, que apontam para uma mudança na natureza da imagem cinematográfica à medida que esta passou, inexoravelmente, a estabelecer relações mais intensas com a televisão, o vídeo, as imagens digitais. As imagens em movimento constituem, a partir dos anos 80, um território de contaminação entre imagens diversas e a reivindicação de um fechamento do cinema ou do documentário sobre si mesmo, em termos teóricos ou práticos, não faz mais muito sentido.

Esse estado de coisas também foi diagnosticado na mesma época pelo crítico de cinema franco-iraniano Youssef Ishaghpour ao definir a televisão como o "extra-campo" do cinema, algo que o determinava do interior e do exterior, e o artista como sendo obrigado a se tornar um "especialista" da mídia e do seu funcionamento (1986, p. 12). Para esse crítico, a criação artística só é possível no interior desse contexto, e não excluída dele. Não há mais como filmar uma certa realidade depurada de outras imagens, de modo que a criação no terreno das imagens tem daqui para frente não apenas o próprio cinema como pano de fundo, mas a multiplicidade de imagens que nos cerca, atravessa e constitui.

Interessa, nesse aspecto, investigar o lugar que o documentário nos anos 80 reserva ao telespectador brasileiro; se há, como na década de 70, a crença de que o trabalho por entre as brechas da reportagem pode suscitar um pensamento crítico a respeito do país, a crença de que o documentário pode ser o lugar dos “desvios” (da Tv, do cinema comercial), mesmo que imerso na efemeridade de uma mídia de massa.

O projeto explora e tira partido da ideia de W. J. T. Mitchell de que as imagens são “agentes” de uma disputa – de sentidos, de entendimentos, de percepções -, de que elas funcionam frequentemente como extensões de práticas políticas, que elas retornam, se misturam, nos buscam e nos interpelam de modo imprevisível. Se as imagens têm uma tendência a ganhar vida, ele afirma, elas nem sempre o fazem do mesmo modo (2011, p. 128). Para a pesquisa em foco, pensar as imagens documentais numa disputa é considerá-las na sua temporalidade, decomposição, desaparecimento, fragmentação e, por fim, na sua eventual sobrevida quando é retomada numa obra.

Bibliografia:

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BELLOUR, Raymond. Entre-imagens, Papirus, 1997.
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DELEUZE, Gilles. Lógica da sensação. RJ: Jorge Zahar, 2007.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images Malgré Tout. Paris: Les editions de Minuit, 2003.
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Interações digitais: usos sociais da Internet em perspectiva etnográfica

Docente: Profª. Drª. Adriana Braga

Descrição:

Este estudo busca investigar as interações ocorrentes a partir dos ambientes de Internet. O objetivo central consiste em descrever e analisar aspectos da dinâmica interacional estabelecida entre participantes das interações sociais no ambiente digital. Em termos mais específicos, pretendo discutir formas particulares com as quais arranjos interacionais se organizam, bem como as relações de pertença e reconhecimento entre as participantes, à luz de teorias da enunciação e da interação social. Procurei caracterizar este ambiente de mídia como locus privilegiado do encontro entre cibercultura, práticas sociais e tecnologia computacional.

Antecedentes:

O presente projeto busca a dar continuidade a atividades de pesquisa já em andamento, desta vez enfatizando principalmente a dimensão de processo de subjetivação presente nas atividades on-line, em dinâmicas comunicacionais tais como constituição de identidades, processos de legitimação e criação de circuitos comunicacionais, aspectos componentes do universo de atividades digitais a que denomino “Ordem da Interação Digital”.

A problemática que norteia este estudo parte da compreensão das redes e mídias sociais, fenômeno midiático expressivo surgido na última década, como ambientes específicos possibilitados pelo suporte técnico e seus usos, que originam práticas sociais peculiares. Acredito que essas interações sociais tecnologicamente mediadas podem ser pensadas como um interessante ponto de partida para investigar a relação entre tecnologias da informação e interação social na contemporaneidade.

Objetivos:

O fenômeno que este estudo se propõe a investigar se refere a atualizações contemporâneas específicas, usos sociais das tecnologias computacionais por grupos em interação. As atividades on-line estão inseridas em condições práticas de uso, utilizando-se de recursos de vários contextos interacionais em combinações específicas de acordo com a demanda do caso de uso em questão. Tais atividades não parecem substituir atividades tradicionais, mas funcionar como seus complementos ou transformações. Vários aspectos da conversação oral-auditiva podem ser identificados na CMC; entretanto, outros modelos podem compor essa atividade específica, como escritura de cartas, telefonema, conversação presencial, etc. Nesse sentido, o material em exame aponta para a necessidade de observação do modo peculiar de expressão comunicativa nestes ambientes, buscando compreender a especificidade dessa cultura comunicacional a partir do modo pelo qual participantes interagem.

A forte dimensão interacional do fenômeno observado aponta para a necessidade de uma abordagem de cunho etnográfico, visando captar com maior precisão e abrangência a complexa relação interacional ali estabelecida. Assim, serão examinadas transcrições de entrevistas realizadas com informantes selecionados/as, anotações feitas a partir da participação em eventos presenciais, interações multimídia encontradas nos ambientes da rede, e ainda, o conteúdo de um diário de campo etnográfico.

Perspectivas teóricas:

Desde a criação de interfaces simplificadas para veiculação de conteúdos on-line, os ambientes de Internet passaram a ser largamente utilizados por usuários/as não especializados/as como meio de expressão individual e coletiva, operando como um espaço social para apresentações do self, onde são veiculadas representações de identidade e de individualidade, em uma dinâmica análoga ao que Goffman (1998) denomina “gerenciamento da impressão” (impression management).

Os indivíduos se agregam a partir de interesses e necessidades que definem conteúdos específicos. Mas para além desses conteúdos, o fato de se sentirem sociados provoca satisfação em seus membros, a formação daquela sociedade como tal é em si um valor. O puro processo de sociação, a forma desse processo é, assim, um valor estético socialmente apreciado. Sendo assim, a sociabilidade (Simmel, 1983) evita atritos com a realidade, de modo que os motivos da sociação, implicados na vida prática, não têm importância neste contexto interacional. Ponto semelhante é desenvolvido por Goffman, para quem a maior parte da interação social cotidiana é possibilitada pelo engajamento comum e voluntário dos participantes no que ele chama de “consenso operacional” (Goffman, 1998), uma espécie de concordância superficial, onde cada participante abstrai suas posições pessoais em prol de uma definição da situação compartilhada por todos:

A conservação desta concordância superficial é facilitada pelo fato de cada participante ocultar seus próprios desejos por trás de afirmações que apóiam valores aos quais todos os presentes se sentem obrigados a prestar falsa homenagem. (...) Os participantes, em conjunto, contribuem para uma única definição geral da situação, que implica não tanto num acordo real quanto às pretensões de qual pessoa, referentes a quais questões, serão temporariamente acatadas, haverá também um acordo real quanto à conveniência de se evitar um conflito aberto de definições da situação. Referir-me-ei a este nível de acordo como um “consenso operacional” (Goffman, 1998, pp. 18-19).

Mesmo com toda a mediação tecnológica, a interação nos ambientes digitais parece não prescindir do encontro presencial. Por vezes, frequentadores/as efetivamente promovem encontros de fato, mais aos moldes da sociabilidade descrita por Simmel. Os encontros são concebidos, planejados e comentados no ambiente digital, e documentados nos ambientes de Internet por participantes. Nesse caso, as relações mediadas pelas tecnologias participam do contexto da interação, e a propósito dela. Esta interação, associação de interesses compartilhados, utiliza as mídias disponíveis de modo complementar, a serviço da interação.

Se por um lado, a teorização de Goffman sobre a ordem da interação face a face parece se aplicar muito bem ao objeto sob investigação, por outro, os dados apontam também diferenças importantes. Goffman considera que há duas espécies de expressividade do indivíduo, atividades radicalmente diferentes e igualmente significativas: a expressão “transmitida”, ligada à linguagem verbal e à intencionalidade, e a expressão “emitida”, que inclui os gestos, olhares, suores, sorrisos ou expressões faciais, permitindo inferências nem sempre controladas pelo indivíduo. No caso das interações digitais, há menos elementos de emissão de expressão, havendo uma preponderância da informação deliberadamente transmitida. Isso traz consequências ao tipo de interação que se estabelece. Segundo Goffman (1998), um indivíduo, ao se apresentar diante de outros, pode agir de várias maneiras com relação ao que esses outros esperam dele. O processo de apresentação do self no contexto digital se dá de diversas maneiras. Relativamente livres da expressividade via emissão, os sujeitos encontram menos obstáculos - ou obstáculos de outra ordem - em tentar manejar a impressão causada nos outros, através de tentativas de controle com relação à informação fornecida.

O ambiente digital apresenta características de interação diferenciadas daquelas apresentadas pela sociabilidade, deixando perceber o desenvolvimento de outra forma de sociação, o conflito. A importância sociológica do conflito (kampf) é problematizada por Simmel (1983) de forma original. Enquanto admite-se que o conflito modifique ou até produza grupos de interesse, o autor se pergunta se o conflito, independente de qualquer fenômeno do qual resulte ou acompanhe, é, em si mesmo, uma forma de sociação. Apesar dos conflitos serem motivados por fatores de dissociação, são também modos de se conseguir algum tipo de unidade. Assim, o conflito pode ser visto como algo positivo, na medida em que ambas as formas de relação, a divergente ou a convergente, se diferenciam fundamentalmente da indiferença entre indivíduos ou grupos, que seria nesse sentido puramente negativa. É da divergência de ânimos e direções de pensamentos que fluem a estrutura orgânica e a vitalidade do grupo. Ao contrário do que pode parecer, unidade e discordância são tipos de interação que não se anulam, mas se somam; e mesmo que a discordância possa ser destrutiva em relações particulares, não tem necessariamente o mesmo efeito no relacionamento total do grupo, podendo até ter um papel inteiramente positivo em quadro mais abrangente. As hostilidades preservam limites no interior do grupo e muitas vezes garantem suas condições de sobrevivência. O direito e o poder de rebeldia contra tiranias, arbitrariedades, mau-humor contribui para a manutenção da relação com pessoas cujo temperamento não poderia ser suportado de outra forma.

Entre os pontos característicos da sociabilidade, Simmel destaca também sua natureza democrática, uma espécie de “toma lá, dá cá,” onde cada participante oferece valores sociais ao ambiente (alegria, realce) na mesma proporção com que recebe. Eliminado o que é pessoal e objetivo, a sociabilidade “cria um mundo sociológico ideal” (Simmel, 1983, p. 172), onde o prazer do indivíduo está implicado no prazer dos outros. Esta espécie de clube criado a partir desta interação específica, que se manifesta como um “campo finito de significação” (Schutz, 1962), desvinculado dos assuntos sérios e objetivos, aparece frequentemente nos materiais da comunicação mediada por computador.

Desta maneira, na sociabilidade, a conversa é o propósito em si, a conversa é a realização de uma relação lúdica, que só quer ser relação. Enfim, talvez seja interessante para justificar a investigação sobre esse tipo de material, a aproximação que Simmel faz da sociabilidade, “exatamente por sua distância de sua realidade imediata, pode revelar a natureza mais profunda desta realidade, de maneira mais completa, consistente e realista que qualquer tentativa de apreendê-la mais diretamente” (Simmel, 1983, p. 180). A considerar o relaxamento dos papéis formais desempenhados em outras situações interacionais, os momentos de sociabilidade tornam-se mais propensos ao fluxo de conteúdos espontâneos, íntimos ou inconscientes, informações talvez mais facilmente protegidas em situações sérias.

Metodologia:

Para os fins deste estudo, considero que dois conceitos estão intimamente articulados, a saber, “interação social” (Goffman, 1999) e “enunciação” (Benveniste, 1989). Por sobre os elementos mais palpáveis das interações digitais - os postslinkslayout - é possível perceber um conjunto de princípios, valores e interpretações sobre os eventos. Negociações de sentido realizadas por interações de modo dinâmico, que negociam significados a partir de perspectivas e métodos práticos de enfrentamento de situações concretas e posicionamentos das/os participantes da interação. Estas perspectivas e posições são afirmadas e registradas através de discursos que se materializam em textos escritos, vídeos, fotos, links, principalmente no contexto das mídias e redes sociais. Os trabalhos sobre os discursos pressupõem que estes já trazem em si “marcas” que revelam aspectos do funcionamento do sistema social e da cultura dentro da qual foram gerados, ainda que, muitas vezes, o/a enunciador/a não o pretenda (Fausto Neto, 1991).

Assim, fragmentos de definições de situação aparecem como tópicos de debate nos discursos desses ambientes, seguidos de outros posicionamentos relativos, estruturando o que chamei de thread (termo tomado da metodologia desenvolvida por Rutter & Smith, 2002, que se refere a um conjunto de comentários motivados por dado assunto em interações digitais), unidade de análise descrita abaixo. O thread, assim, se mostra como resultante de um duplo ordenamento: sujeito à ordem do discurso (na sua dimensão política de negociação de significados), e à ordem da interação (na sua dinâmica de apresentação do self das/os participantes). Desta maneira, acredito que a articulação entre enunciação e interação social resulta produtiva para operacionalizar a leitura dos complexos processos interacionais sob exame.

O contexto discursivo da Internet pode ser pensado como um front de lutas por definições de realidade, e nessa “transação de falas” (Mouillaud, 1997) que produz os sentidos, significados de toda ordem disputam espaço de legitimidade. No entrecruzamento de pressupostos culturais, cultura de consumo, saberes tradicionais e relações históricas de poder, definições de realidade são propostas, negociadas e transformadas no âmbito da constituição desses discursos.

Nas relações interpessoais face a face, por telefone e assim por diante, as pessoas sabem como agir visando determinada impressão no interior de seu grupo de convivência cotidiana. Mesmo que nenhuma regra esteja formalmente codificada, existe uma regulação tácita que cria expectativas de práticas sociais entre os indivíduos. A CMC, por sua incipiência, demanda dos/as participantes das interações neste contexto certa improvisação diante de situações não vividas. Sendo assim, adapta-se modelos de outros contextos de interação para experimentar e ao mesmo tempo criar as regras para as relações ocorrentes neste ambiente específico. Assim, os padrões de expressão praticados nesses ambientes não deixam de estar submetidos ao controle social das/os participantes da interação. A possibilidade do anonimato, por exemplo, pode funcionar simultaneamente como estímulo para vínculos de amizade e intimidade, bem como para a agressividade e desrespeito ao outro.

Para o exame das trocas sociais ocorrentes no ambiente digital, uma aproximação caso a caso busca o refinamento da reflexão sobre os objetos comunicacionais emergentes a partir de sua natureza prática mais que teórica. Ao se afastar das práticas interativas vividas pelos sujeitos, corre-se o risco de produzir uma teoria estipulativa que se baseia na potencialidade oferecida pela tecnologia disponível na Internet como meio de comunicação e não em seus usos concretos.

No clássico livro “A Interpretação das culturas”, de 1973, Geertz se posiciona entre aqueles que se preocupam com a limitação, com a especificação do conceito de cultura, visando reduzi-lo a uma dimensão justa que garanta a continuação de sua pertinência. Para substituir a teorização de seus antecessores que concebiam inúmeras e amplas definições para o conceito, o autor defende um conceito de cultura semiótico. Partindo da proposição de Max Weber, segundo a qual “o homem (sic) é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,” a cultura seria “essas teias e sua análise” (Geertz, 1978, p. 15), demandando assim uma ciência interpretativa em busca do significado.

A técnica etnográfica foi concebida e historicamente aplicada a grupos sociais em interação face a face com o/a etnógrafo/a, que fazia da sua experiência uma fonte de dados. O modo peculiar de interação ocorrente nos ambientes digitais ainda é de alguma forma uma novidade, que traz desafios metodológicos à aplicação desta tradicional técnica de pesquisa, tornando necessário ajustar alguns pressupostos da etnografia a esse novo objeto, de que somos testemunhas e agentes em sua confecção.

Em termos metodológicos, a etnografia se funda na noção de observação participante, visto ser impossível, em situações face a face, uma observação não-participante. Ora, os ambientes interacionais da Web caracterizam-se pela ausência física das/os participantes, sendo possível tornar-se “invisível.” Sendo assim, é possível apreender a cultura de um grupo somente observando? É possível uma “observação não-participante?”

A condição que possibilita o ofício do/a etnógrafo/a é a imersão e a experiência da efetiva participação no ambiente pesquisado. Este ofício inclui participar, observar, descrever: categorias que formam a unidade do fazer etnográfico. Então, lurking é participação? Essa especificidade é o objeto central desse questionamento metodológico. A observação participante on-line é uma participação peculiar, na medida em que, em termos de presença/ausência, a informação acerca da presença do/a observador/a no setting não está disponível às/aos demais participantes.

A partir de uma problematização em torno das particularidades da interação em um ambiente baseado em texto, o newsgroup RumCom.local, dois pesquisadores ingleses, tendo optado pelo método etnográfico, relacionam as vantagens da sua aplicação ao ambiente on-line.

Etnografia online é certamente um sonho do pesquisador. Ela não implica em deixar o conforto de seu escritório; não há complexos privilégios de acesso para negociar; dados de campo podem ser facilmente gravados e salvos para análise posterior; um grande montante de informação pode ser coletado rapidamente e sem custos (Rutter & Smith, 2002a, p. 3).

Os autores alertam para a importância de o/a pesquisador/a estar atento a respeito de onde estamos estudando como etnógrafos eletrônicos, na medida em que, como em uma ligação telefônica, as relações estabelecidas na rede são definidas por atos de interação e comunicação, considerando que não há um “lugar” no universo virtual para além da metáfora (2002a, p. 4).

No estudo das ações sociais, a etnometodologia (Greiffenhagen & Watson, 2005) trata do seu sentido como sendo situado e prático, ou seja, envolvendo um âmbito de considerações práticas para o uso, o que Schutz (1962) chama de ‘atitude da vida cotidiana.’ Tais atividades são caracterizadas mais por sua natureza prática que teórica. Assim, recomenda-se proceder através de análise empírica adequada, baseada caso a caso.

Em termos metodológicos, esta vertente da Sociologia trabalha com a noção de ‘exigência singular de adequação’, uma competência exigida do/a analista na atividade concernida. A competência comum na atividade sob exame pode evitar que o/a analista descreva as atividades dos/as pesquisados/as de forma estipulativa ou focalize nas vicissitudes do/a novato/a. Ou seja, o que pode ser familiar para os/as participantes de uma interação específica pode parecer ‘estranho’ para um/a observador/a pouco competente no campo do fenômeno.

Os logfiles, registros das atividades realizadas produzidos através da própria tecnologia, muito frequentemente são tomados como os dados da pesquisa, facilitando os problemas de coleta de material para análise (Miller, 1995). Entretanto, há muitos perigos nesta opção metodológica. Os logfiles apresentam uma vista aérea da interação geral, ou seja, um ponto de vista típico do/a analista, não do/a participante da interação, uma instância corrente, em processo, além de perder a possibilidade de capturar como os/as participantes estabelecem aquela interação ao longo do tempo. O uso das tecnologias de comunicação está implicado em atividades mais amplas da vida cotidiana, a comunicação estabelecida por esses meios pode ter outro objetivo além da comunicação em si, desta forma a dependência exclusiva dos logfiles envolve uma descontextualização que arrisca não permitir que o fenômeno seja percebido propriamente. Assim, há uma tentação de tratar os logfiles como independentes e priorizar apenas os seus conteúdos, removendo as especificidades da interação comunicativa. Nesse sentido, analistas que tomam os logfiles como única fonte de dados poderiam ser caracterizados como o que Roy Turner chamou de ‘arqueólogos/as por opção,’ analistas que optam por considerar apenas fragmentos e traços de uma sociedade em suas análises, quando a própria sociedade ainda está disponível (Greiffenhagen & Watson, 2005).

As possibilidades e limitações das abordagens apontadas acima evidenciam a necessidade de, a cada pesquisa, desenvolver uma composição de técnicas que resulta, em cada caso, num aparato metodológico específico - naquilo que Becker (1993) denomina “multimétodo.” Como dito acima, os/as participantes conduzem suas atividades na Internet tendo como modelo recursos de várias práticas comunicacionais anteriores, sendo uma delas a escrita em geral, concretizadas em enunciados passíveis de ser analisados pelo aporte teórico fornecido pela Análise do Discurso - a complementar o trabalho etnográfico.

Se por um lado, o arquivo disponibilizado pela tecnologia da Internet em logfiles parece oferecer ‘tudo’ o que se passa nas atividades da rede, o que parece minimizar os problemas de coleta de dados, por outro, a utilização deste recurso como única fonte de dados pode tirar a oportunidade do/a analista de perceber os sentidos intersubjetivamente partilhados.

O ambiente disponibilizado pela Internet não é ocupado de forma homogênea, há muitas estruturas distintas. Das muitas aplicações disponíveis, algumas se estabelecem e permanecem, enquanto que outras formas de uso dos recursos técnicos proporcionados caem em desuso. Entre os formatos que parecem ter se estabelecido com vigor, pode-se destacar o e-mail - meio de comunicação em geral pessoal e privado -, o website - institucional e público -, o mensageiro instantâneo - pessoal, privado e sincrônico -, e as mídias e redes sociais, público e pessoal, ou seja, espaço público, mas “com dono/a”.

O ponto de partida para a operacionalização deste estudo consiste em comentários publicados nas redes sociais. A estes dados, acrescentam-se entrevistas presenciais, por telefone e mensageiro instantâneo com participantes, além de observação participante em encontros presenciais, experiências registradas sistematicamente em um diário de campo etnográfico. Estas opções visam a ampliar a base empírica de dados para a compreensão do fenômeno em sua complexidade, evitando os perigos de ter como única fonte de dados os registros disponíveis nos logfiles, como abordado acima.

A unidade básica de análise para lidar com os numerosos dados provenientes dos registros disponíveis na rede consiste no thread, um conjunto de comentários relativos a um mesmo tema, fenômeno interacional/verbal típico da interação social na Internet, descrito por Rutter e Smith (2002a; 2002b). Em um thread, as/os participantes alternam comentários datados e numerados, em uma espécie de radicalização da dinâmica de “turnos de fala” (Schegloff, Sacks & Jefferson, 1974) na conversação face a face, na qual não há corte ou sobreposição de falas, mas uma sequência configurada.

Assim, considero importante buscar, além da diversidade dos conteúdos apresentados nos ambientes digitais, “os princípios estruturantes que fornecem ordem em meio ao fluxo” (Smith, 2004, p. 51). A estipulação dos threads, a observação de sua duração, frequência e conteúdos para a organização e exame desses dados em seu conjunto demonstram grande potencial analítico, uma vez que é no confronto entre posições manifestas ao longo dos threads que a negociação social dos sentidos se realiza, tanto na ordem do discurso quanto na ordem da interação, os dois eixos principais desta investigação, visando a uma caracterização profunda das modalidades de interação ocorrentes no ambiente digital.


Jornalismo Investigativo e interesse público: as experiências profissionais no processo de construção social da realidade

Docente: Prof. Dr. Leonel Azevedo de Aguiar

Descrição:

Esse projeto de pesquisa visa estudar processos e produtos jornalísticos que resultem em modelos analíticos e ferramentas metodológicas para o campo dos estudos em jornalismo. A partir das teorias do jornalismo, pretende compreender quais são os critérios de noticiabilidade que regem a produção da informação no jornalismo investigativo em comparação com a cobertura factual cotidiana, de modo a descrever as melhores práticas jornalísticas e examinar as representações sobre interesse público pela comunidade dos jornalistas.

A proposta desse projeto é, portanto, pesquisar os critérios de noticiabilidade que regem o jornalismo investigativo em dois jornais da “grande imprensa” editados na cidade do Rio de Janeiro: O Globo e O Dia. A pesquisa tem um caráter comparativo, analisando os critérios de noticiabilidade nas coberturas especiais com as matérias factuais produzidas pela cobertura cotidiana nas duas empresas jornalísticas, tanto na mídia impressa quanto na mídia digital.

Antecedentes:

O projeto está inserido em uma linha de continuidade teórica que estuda as relações de poder-saber que atravessam os discursos jornalísticos produzidos pela “grande imprensa”. Nessa perspectiva, explora o campo jornalístico enquanto uma das regularidades discursivas que constituem a cultura das mídias e a cibercultura. Em diversos artigos já publicados, procuramos identificar as formações discursivas presentes no campo midiático contemporâneo, com destaque para o jornalismo especializado e duas de suas vertentes: o jornalismo científico e o jornalismo ambiental. A pesquisa sobre jornalismo investigativo prossegue nesta teorização.

Objetivos:

Gerais

Específicos

Perspectivas teóricas:

A partir da premissa de que os meios de comunicação de massa são dispositivos de construção social da realidade, a pesquisa visa contribuir com determinadas questões para a teoria do jornalismo. Por um lado, pretende identificar os conceitos na obra de Foucault que possam ser utilizados para a compreensão do campo midiático e da ordem do discurso jornalístico. Por outro, busca refletir sobre os estudos do jornalismo, com destaque para as conceituações de notícias como construção discursiva e as rotinas produtivas que envolvem a comunidade interpretativa dos jornalistas.

Uma determinada perspectiva teórica desta pesquisa vincula-se à teoria do jornalismo, tomando como ponto de partida os trabalhos de Traquina (2005), Lage (2005), Sousa (2004), Schudson (1996), Zelizer (1993), Genro (1987), Hall (1984) e Tuchman (1978). A partir dessa teoria, pretendemos realizar um estudo sobre os emissores e os processos produtivos no jornalismo impresso, tendo como referencial teórico às pesquisas sobre a produção de informação, mais conhecidas como newsmaking. Conforme Wolf (2003), este enfoque teórico não se refere à cobertura de um evento particular, mas a rotina produtiva cotidiana da cobertura jornalística por períodos prolongados. Os estudos de newsmaking pretendem analisar o conjunto de critérios que definem a noticiabilidade de cada acontecimento, isto é, a sua relevância para ser transformado em notícia.

A outra perspectiva teórica deste projeto é determinada pelos métodos genealógicos e arqueológicos de análise das práticas discursivas e suas relações de poder-saber propostos por Michel Foucault. Estudar o jornalismo enquanto uma ordem do discurso – com poder para disciplinar e controlar a multiplicidade dos acontecimentos em regularidades discursivas que produzem um determinado saber sobre o real – está se tornando uma instigante dimensão para o campo dos estudos do jornalismo.

O projeto, portanto, está voltado para uma dupla visada teórica: explorar as teses da arqueologia do saber e da genealogia do poder da obra foucaultiana - vinculando suas possíveis contribuições ao campo comunicacional - e refletir sobre os estudos do jornalismo, com destaque para a teoria do newsmaking. Nossa intenção é colocar diferentes teóricos em um diálogo fértil, possibilitando inovações metodológicas e conceituais para os estudos em jornalismo.

Metodologia:

A perspectiva metodológica desta pesquisa visa privilegiar as análises, a partir da teoria do newsmaking, das estratégias discursivas através das quais a mídia jornalística constrói a representação social da realidade. Duas questões podem definir o âmbito e expor os problemas de que se ocupa essa teorização: que representação da sociedade os noticiários fornecem? Como se associa essa representação às exigências cotidianas de produção de notícias? O ponto central desse tipo de questionamento situa-se dentro de dois limites: a cultura profissional dos jornalistas e a organização do trabalho com suas rotinas produtivas.

A pesquisa pretende discutir como os critérios de noticiabilidade estão estreitamente relacionados com os processos de rotinização e de estandardização das práticas produtivas nas grandes empresas jornalísticas. Essa questão aponta para uma hipótese: o caráter negociado dos processos de produção da informação. Ou seja, o produto informativo parece ser o resultado de uma série de negociações, pragmaticamente orientadas, que têm por objeto o que é publicado e o modo como é publicado no jornal, seja impresso ou digital. Essas negociações são efetuadas pelos jornalistas - enquanto uma comunidade interpretativa - em função de inúmeros fatores, que apresentam graus diferenciados de importância, e em momentos diversos do processo produtivo.

Conforme Traquina (2005) e Wolf (2003), as pesquisas de newsmaking utilizam a técnica da observação participante, já que este procedimento metodológico torna possível reunir e obter, sistematicamente, os dados fundamentais sobre as rotinas produtivas operadas na empresa jornalística. O pesquisador deve estar inserido, cotidianamente, no ambiente de trabalho dos repórteres investigativos para realizar a observação sistemática dos fatos. Esta metodologia é complementada através de entrevistas com os jornalistas envolvidos nesses processos produtivos.


Nouvelle Vague e Cinema Novo – paradigmas de cinema e suas relações”

Prof. Dr. Gustavo Chataignier

Descrição:

O projeto pretende explicitar um circuito de visibilidade que alçou o Cinema Novo brasileiro ao posto de cinema internacional de vanguarda. Para tanto, há que se compará-lo não só com a Nouvelle Vague francesa, mas, sobretudo, com o papel central desempenhado pela crítica especializada – notadamente, mas não exclusivamente, os Cahiers du Cinéma. As ondas dos novos cinemas que assolaram o mundo desde finais dos anos de 1950, em particular a Nouvelle Vague francesa e o Cinema Novo brasileiro, são pontos paradigmáticos para a compreensão não só da cinematografia desses países, mas dos rumos da Sétima Arte desde então: optar pela rua ao invés dos estúdios, câmera na mão, produções de baixo custo, politização da arte, lirismo não sentimental, novas relações temporais na montagem e assim por diante. Interessa-nos capturar tanto as linhas de força formadoras desse acontecimento quanto a presença desse passado, a posteriori reapropriado, em epígonos, remanescentes e jovens criadores.

Antecedentes:

No que tange nossa participação junto à pós-graduação, acreditamos que nossas publicações e nosso interesse em pesquisa se coadunam com as atividades já desenvolvidas pelo corpo docente. Nosso projeto, onde propomos um diálogo entre o Cinema Novo brasileiro e a Nouvelle Vague francesa, nos permite debater tanto a historicidade da produção cinematográfica dos referidos países quanto, concomitantemente, a influência recíproca de uma cinematografia em relação a outra. Da mesma maneira, tal perspectiva nos inseriria na linha de pesquisa “Comunicação e Experiência”, pois acreditamos que a noção de relação, que atravessa nossa discussão, se conjuga com a descrição da comunicação enquanto produção de sentido (subjetiva) e “materialização da experiência” – quer seja sob o eixo temático quer seja no âmbito da estética. De todo modo, as vozes do tempo se darão a analisar em imagens em movimento. A visibilidade passa assim a ser compreendida como fenômeno social mediado por bens simbólicos. A experiência proporcionada pelos filmes analisados seria, portanto, um veículo de comunicação. De um modo geral, podemos afirmar que nossas publicações convergem para a dita linha de pesquisa. Além dos textos tanto sobre Glauber Rocha quanto sobre o Cinema Novo (Revistas Panambí/ Valparaíso e Appareil/ MSH, respectivamente) pensamos aqui em dois trabalhos: o primeiro, um estudo sobre os cineastas Robert Bresson e Eugène Green (Revista Viso/ UFRJ); e um segundo, uma leitura sintomal da obra de arte cinematográfica (atos do colóquio internacional de Teoria Crítica da UNESP). Em todos os casos cremos que o contato com a materialidade da obra, mediado pela atualização presente da tradição, cria uma dialética de recepção na qual se lida com a historicização dos sentidos – uma nova partilha das maneiras de se sentir, para falar com Rancière, sempre moldável e moldada. Que mencionemos, ainda, nossas pesquisas no campo da filosofia, onde procuramos enlaçar a teoria da história (mestrado e doutorado – cf. nosso livro Temps historique et immanence: les concepts de nécessité et de possibilité dans une histoire ouverte [Paris: L’Harmattan, 2012]) com questões estéticas (nossa ocupação central desde 2011).

Objetivos:

Esta proposta transcende o trabalho individual. Seu intuito é o de consolidar uma equipe composta por alunos no Departamento de Comunicação da PUC-Rio, tendo em vista as discussões desenvolvidas em conjunto. Enumeramos alguns dos propósitos da inserção na pós-graduação: 1) formação e qualificação de recursos humanos; 2) estabelecer trocas com equipes já consolidadas e em processo de formação no Rio de Janeiro e em outros centros; 3) promoção de aulas e seminários sobre cinema (um seminário por ano); 4) publicação dos resultados parciais e finais das pesquisas (um artigo por semestre); 5) participação em eventos científicos; 6) contribuir para o fortalecimento institucional tanto do Departamento de Comunicação quanto da PUC-Rio em meios onde transitamos.

Perspectivas teóricas:

Ora romântico, ora regionalista ou mesmo voluntarioso, o Cinema Novo, na virada dos anos de 1950 para 1960, surge como uma expressão crítica da realidade brasileira. A expressão técnica do cinema deveria ter como meta a denúncia do subdesenvolvimento, o que torna a arte um instrumento, senão de mudança direta na sociedade, ao menos de denúncia de suas mazelas. Segundo o historiador Figueirôa, a unidade política precedeu e possibilitou a unidade profissional. Tal busca rompia com padrões narrativos tradicionais e narrativas com visões demasiadamente ordenadas. Assim, o engajamento levou também a uma pesquisa formal que tocasse e despertasse o público (Figueirôa, 2004, p.31). As tensões entre a ordem narrativa e a plástica das imagens é criativa e diferentemente tratada pelos autores brasileiros. Faz-se “sentir a câmera”, em estilo que põe a nu uma pretensa transparência de imagens, prontas para o consumo, e questiona a decupagem clássica (Xavier, 2004, p.17). Prova disso é que tanto O Bravo guerreiro, de Gustavo Dahl, eminentemente político, quanto O Padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, cujos dilemas existenciais de profundas minas e as indicações de ação nos transportam de Drummond a Bresson, se encaixam na “categoria”.

O Cinema Novo, nas palavras de seu maior expoente – Glauber Rocha –, era, antes de mais nada, uma crítica à chanchada. A definição negativa frustrava expectativas de rápida rotulação por parte da imprensa; não obstante, em todo caso, não fugia do programa de um cinema de autor disposto a alcançar efeitos políticos (Rocha, 2003, p.131). Até porque, conclui-se o artigo de forma aberta (colada na expressão fílmica): “(...) este cinema não se definirá previamente: sua existência é a prática de anos vindouros, na busca inquieta e na criação possível dos jovens diretores brasileiros (...)” (idem, ibidem, p.151).

Nouvelle Vague não deve ser lida como uma totalidade fechada, como um movimento uniforme. Não se sabe onde arrebentam as ondas. Mesmo na França, e no interior da própria redação dos Cahiers, houve polêmica. De 1951, ano da fundação, até 1954, momento das primeiras intervenções em nome de uma “política dos autores” de Truffaut e Godard, a dominância era estética, e a temática política se situava nos comentários de alguns contribuidores, como Kast e Sadoul. De toda maneira, um denominador comum é o imbricamento necessário entre produção cinematográfica e crítica – não só em sua acepção de determinação simbólica, mas também pelo fato dos críticos terem passado à prática. Para um cinéfilo, sobretudo o educado pelos dispositivos Nouvelle Vague e Cinema Novo, “aprender a ver, em definitivo, é essencialmente criar o ver” (Baecque, 2010, p.54). Nesse sentido, nota-se uma primazia do olhar em relação a questões de ordem técnica e econômica.

Se a política implica uma “presença de si no presente”, sem garantias futuras e a realização de essências ancestrais, elabora-se uma nova concepção política do cinema, certamente distinta de um “cinema político”. A tarefa é dizer o contemporâneo, o que pode ser irradiado para as demais atividades sociais – inclusive a política.

Sujeito e objeto, crítico e conteúdo, deveriam se debruçar exclusivamente no estilo, reflexo do autor. Eis a chamada “política dos autores”, momento anterior à tematização explícita que abarcará as produções brasileiras. Ficam de lado assim aspectos políticos, econômicos e históricos (Baecque, 2008, p.178, 182 e 149). O pensamento do autor se expressa pela mise en scène, “encenação”. Já consagrado, Godard afirma em sua História(s) do cinema que o pensamento de um autor se concretiza na mise en scène: “pensamento que toma forma/forma que pensa” (Godard, 1998, p.36-37). Toda a atividade dos Cahiers aí se encontra sintetizada. A operação conceitual não separa arbitrariamente fundo e forma: “o fundo é a forma” (idem, 1959).

Em crise financeira, os Cahiers recompõem sua formação societária e mudam de redação, em julho de 1964. Jacques Rivette e Jean-Louis Comolli passam a ser figuras de proa. A orientação, depois da exaltação da “qualidade”, do formalismo e da “política dos autores”, chega em outra instância: o cinema político, com forte historicização dos textos. Sábios e modelos para os arautos da Nouvelle Vague tinham se exaurido, um fator que explica o abandono da “política dos autores”. Ademais, tal estratégia interpretativa é mais eficaz ao trabalhar com a acumulação do que com a aparição, com os polos “obra” e “filme”. Ora, nem sempre isso se confirma possível (ou, ao menos, leva tempo maior do que o espaço entre uma edição e outra). O fator explosivo foi a ebulição de cinemas periféricos no mundo, exigindo uma tomada de posição da prestigiosa publicação. Tal movimento foi acompanhado por uma nova geração de críticos (Baecque, 2010, p.374-375).

Foi no bojo desse deslocamento de forças que o Cinema Novo ganhou nova impulsão. As revistas especializadas francesas publicaram, ao menos em uma oportunidade, um dossiê a respeito do Cinema Novo. A cinematografia recebia vasto panorama sócio-histórico, abandonando o formalismo até então hegemônico. Acredita-se que a boa compreensão de um filme é possibilitada pelo conhecimento prévio de sua inserção cultural ou extra-fílmica (Figueirôa, 2004, p.92). A crítica se somava então, necessariamente, à informação. Se tal procedimento é válido em seu didatismo e de fato ajuda a alargar horizontes, negligencia a capacidade de espanto diante de uma experiência; assim conduzido, o ato de se retirar o autor do altar acarreta numa identificação entre filme e referência, reduzindo o cinema a um conjunto de conhecimentos prévios. De todo modo, o decisivo era legitimar, convencendo o leitor-espectador, da relevância das obras mencionadas, muitas delas não disponíveis em solo francês. O acontecimento artístico busca sua tradução e divulgação na imprensa. Em termos de teoria da comunicação, a informação faz a mediação “entre uma realidade e a imagem dessa realidade”. Ou seja, entre o filme e sua recepção. A própria mensagem adquire status de “acontecimento”.

Os brasileiros caem nas graças dos franceses, sendo eleitos como modelo de cinema revolucionário. As resenhas críticas, marca dos Cahiers, não privilegiaram obras brasileiras nos primeiros anos de recepção, quantificação igualmente válida para Positif. Isso comprova que o cinema era senão “identificado” ao menos fortemente ligado à conjuntura. Pois não faltaram balanços, entrevistas com autores e relatos de debates e mostras no biênio 1965-1966 (idem, ibidem, p.100 e 104).

Metodologia:

Conjugação da leitura, por um lado, de bibliografia tanto sobre o Cinema Novo brasileiro quanto sobre a Nouvelle Vague, e, por outro, de estudos relativos à teoria da imagem e das relações entre arte e pensamento. Em paralelo, contamos com a incontornável análise de filmes e sua comparação – tanto em aspectos temáticos quanto no que tange suas características intrinsicamente artísticas.